A Ampulheta de Comprimidos

Malala passou pela porta da casa de banho e olhou para o interior. Depois de tomar o pequeno-almoço passou mais uma vez pela casa de banho e vislumbrou o seu interior. No quarto, inicialmente com o intuito de se vestir, parou e olhou em redor: Até que está arrumado… Ainda não tive tempo para o desarrumar. Finalmente o meu pai voltou para casa dele, estava farta de o aturar com todos os seus cuidados e simpatias ranhosas e forçadas. Depois de decidir que, mais uma vez, mais um dia, ia ficar de pijama o dia todo foi para a sala de estar. Claro, passando um pequeno olhar à casa de banho. Chegada à sala, enquanto se sentava, não, enquanto se deixava cair no sofá, olhou para o relógio de parede – 07h55 (embora não tenha sido isso que ela viu, o que ela viu foram os braços do relógio na posição aproximadamente correspondente a esta hora). “Está quase!”

De comando na mão consigo ver perfeitamente as suas enormes ligaduras nos pulsos…

Três ou quatro minutos de zapping e Malala levantou-se, desta vez não se limitou a olhar para a casa de banho; agora entrou e parou junto ao alvo de todos os olhares – uma ampulheta de comprimidos. Com alguns segundos no cronómetro ainda caiam grãos dos comprimidos para a metade de baixo. O pequeno monte de pó de diversas cores recebeu o seu último grão. Este último grão de comprimido caiu sobre o monte de grãos, mesmo no centro, e desceu pelo monte abaixo (Sísifo desesperaria com a vista de tal coisa). Malala esperou pela fase seguinte, o colorido monte foi aspirado para baixo da base e ouviu-se um ligeiro ruído e de seguida um Ting! Igualzinho ao som do micro-ondas (Nada boa escolha, não devia associar a medicação com o som de comida pronta, mas prontos…). Numa pequena gaveta transparente caiu um comprimido; mas a gaveta estava trancada.

Malala colocou o seu indicador direito (o dedo das segundas-feiras) numa pequena plataforma. Desta saiu uma pequena agulha que invadiu Malala e recolheu uma gota de sangue. Logo de seguida foi colocado no local um anestésico local e Malala deixou de sentir a saborosa picada. Um novo temporizador apareceu no monitor e os 5, 4, 3, 2,1 segundos passaram lentamente!

A máquina escreveu sobre si mesma: «Valores sanguíneos da medicação em doses terapêuticas. Pode tomar a sua medicação. Obrigado pela moderação. Bom dia.»

A pequena e transparente gaveta que continha o comprimido abriu e Malala devorou o comprimido num só movimento.

 

O Sol já fez grande parte do seu arco no céu e Malala não se lavou, nem se vestiu, nem fez grande coisa de forma ativa, como entidade pensadora que é. Trinta e três vezes passou pela casa de banho e desejou que os números no monitor da ampulheta descessem mais rapidamente. O número 33 não vem só da minha omnisciência, Malala também os contou. Ela contou as vezes que foi visitar a ampulheta (7 naquele dia), as vezes que se contentou com um simples olhar (26 naquele dia). As suas vitórias, quando quer ir olhar para a ampulheta de comprimidos e decide, após uma batalha consigo própria, não ir (10; hoje foi um dia bom).

Há cerca de uma semana que anda nisto; quando seu pai estava aqui não tinha liberdade de tantas visitas à ampulheta, quando o número subia ele chateava-se com ela e dizia que ela devia querer viver com mais força; como se fosse assim tão fácil! Talvez sinal de melhorias, ontem adicionou uma nova contagem: vezes que decide não ir ver mas conta somente a vitória como parcial pois, aquando da batalha, confirma as horas e como ainda falta muito tempo, decide não ir ver a ampulheta (hoje já foram 5).

No meio destas contas ela vai pensando em pessoas que conheceu ao longo da sua vida… coisas e sítios e experiências e sensações… Estava principalmente presa nas coisas, nos milhares de itens que possuía no seu enorme apartamento, atualmente a sua prisão domiciliária. Foi à porta e olhou para o corredor pelo olho mágico e voltou para o seu quarto, com uma decisão algo momentânea, mas enorme e profunda – ia dar volta a esta situação!

Pegou no seu tablet e iniciou uma aplicação. Foi apontando numa lista as coisas que foi dizendo em voz alta. Passou uma semana a catalogar tudo o que possuía, com listas correlacionadas e temáticas - tudo que ia e tudo que ia ficar.

A 3 dias da psiquiatra a visitar já tinha tudo empacotado nas caixas que o pai lhe trouxe. Os dois passaram dois dias a empacotar e a falar sobre melancólicos objetos que, na realidade, de melancólicos apenas tinham as memórias que despoletavam.

 

Chegada a psiquiatra, esta ficou algo assustada com a montanha de caixas, mas quando viu que a ampulheta estava atrás de imensas coisas sem ninguém lhe prestar atenção, sorriu!

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