Corpos mortos! Corpi morti!

Um enorme barco chega da Crimeia, todas as pessoas e carga são colocadas em terra, com estas uns visitantes indesejados, e com estes a peste bubónica!

Giuseppe acorda, come um pedaço de pão e veste as várias camadas de roupa que o seu trabalho exige. Tapa todos os pequenos pedaços de pele que possam entrar em contacto com o mundo. Coloca uma máscara, um enorme capuz e por fim as luvas. Fecha a porta de sua casa e sobe para a gôndola que usa para o trabalho – recolher os corpos das vítimas da calamidade que assola Veneza!

“Corpos mortos! Corpi morti!” Giuseppe grita estas palavras para as casas e quando tem respostas, a maior parte das vezes esta vem na forma de gritos e choros.

“Aqui, aqui!” Uma voz de um homem vinda dum 3º andar… Vem duma enorme casa, Giuseppe para a gôndola e prende-a. Bate à porta e espera. O senhor abre a porta e Giuseppe vê que este não trouxe o ou os cadáveres e diz: “Não posso entrar na sua casa! Está contaminada! Tem que trazer os corpos até à porta. O meu trabalho só começa da porta para fora…” O senhor está destroçado, magro e ao segundo olhar Giuseppe vê uma bolha no seu pescoço… Giuseppe afasta-se um pouco e diz: “Onde estão os corpos?” O senhor afasta-se da porta e aponta para as escadas.

Sobem até ao 3º andar, e num quarto, deitadas na cama estão duas crianças e uma mulher, cuidadosamente arranjadas, mas mortas, com bolhas na face e braços. Giuseppe pede ajuda ao senhor e juntos embrulham a família do homem em lençóis. Levam os corpos, já algo podres e fétidos, para a gôndola. Colocam-nos juntos das outras dezenas de corpos que Giuseppe recolheu nas últimas horas.

Giuseppe avança pelos canais, atrás de si um cheiro a morte como só as pessoas que viveram nas grandes cidades europeias desta época conheceram. “Corpos mortos, corpi morti!” Ouve uma algazarra numa das casas próximas e para a gôndola à porta. Ainda na manobra de estacionamento, a porta abre-se quase numa explosão e de lá de dentro sai disparado um senhor que cai para cima da gôndola. Este fica em muito mau estado, está com dificuldades respiratórias e coberto pelo grande mal! Mas ainda vive.

Giuseppe olha para o senhor e para a porta e grita: “Que se passa!? Corpos mortos! Os vivos são para os médicos!”

Da porta sai uma mulher, ainda jovem e ainda com cor na face. “Médicos!? Esses ou estão mortos ou fugiram da cidade! E esse aí está como morto, leve-o!” O tom dela não agradou nada a Giuseppe… Mas junto à mulher aparecem agora três crianças que se agarram umas as outras e às pernas de sua mãe. A mulher muda de tom ao sentir os seus filhos: “Por favor, ajude-me! Eu e os meus filhos não temos nenhuma bolha e o meu marido, a tentar salvar as pessoas doentes pôs-se nesse estado! Estou orgulhosa por ele ser um homem tão honrado mas a sua honra pode matar os meus filhos e isso não posso deixar acontecer…” Giuseppe e a senhora ficam parados, sem expressão visível, a olharem-se nos olhos. O esposo dela com muito esfoço endireita-se na gôndola e respira ruidosamente… Segura nas largas vestes de Giuseppe, extremamente desadequadas para o verão mediterrânico, e puxa levemente: “Leve-me!” Uma simples palavra mas no olhar do homem uma completa história de vida. Giuseppe levanta o seu olhar e despede-se da família sem palavras e sem gestos.

Giuseppe já não apanha um raio de sol direto em nenhum canal, está na hora de realizar a última tarefa do dia – enterrar os mortos. Dirige-se para o Grande Canal e daí para Lazzaretto Vecchio, uma pequena ilha junto a Lido. Na saída do canal, vê alguns colegas de trabalho, cada um deles acompanhado por um monte de corpos inanimados.

Todos os recolhedores de cadáveres convergem em Lazzaretto Vecchio e iniciam o descarregar. O senhor que se juntou hoje a Giuseppe, Dante, tenta ajudar mas não tem força suficiente. Giuseppe explica a situação a um outro recolhedor de cadáveres e este diz-lhe que também já teve um desses, uma senhora idosa que não queria matar as netas.

O enorme buraco está aberto e os recolhedores, agora em pares, trazem os cadáveres para a sua morada final. Quando todos os cadáveres estão na cova, olham em redor e Giuseppe injuria a vida! Nenhum padre teve a coragem de dar uma despedida digna a estas centenas de podres coitados… Um dia mau. O chefe avisa que já terminou a contagem e que podem fechar o buraco.

Giuseppe acorda, come um pedaço de pão…


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