O relojoeiro do relógio da Câmara Municipal

Umas voltas mais e o ponteiro dos minutos brilhará, lançando sobre toda a vila o esplendor do tempo. Ah! Como é bom ver o relógio em todo o seu esplendor. Vou descer para o ver devidamente.

Roberto, deixa a auxiliar sozinha e desce as escadas o mais rápido que as suas pernas permitem, o que significa que vai muito devagar. Desce, uma a uma, sempre com o auxílio de seus braços e bengala. Num dos pátios das escadas dá uma olhadela às horas e pensa: “Ótimo, são 4h58, vou apanhar as badaladas e a música.”

Já na praça, em frente à torre da Câmara Municipal, Roberto coloca-se mesmo no centro e espera. Olha para o seu dourado relógio e observa o periódico mover da agulha. Ela salta sem sair de seu sítio e já se encontra sobre o 11… Roberto olha para o relógio da torre e absorve: Ting! “Uma.” Ting! “Duas.” Ting! “Três!” Ting! “Quaatro!” Ting! “Cinco!” Roberto até deu um pequeno impulso em seus joelhos, num movimento que umas décadas atrás teria sido um salto de júbilo. Está dada a hora, agora vem a música. Da torre começa a soar uma peça de piano, melódica e bela, chama-se “A ária nunca cantada”. Foi escrita por um compositor da vila, que obteve fama mundial e chegou a tocar para um Czar, mas morreu pobre e com uma escoliose brutal que o roubou da vida antes de morrer.

Roberto fica a ouvir até terminar o trecho da música; são 17 horas e 2 minutos. A auxiliar, neta de Roberto, passa o seu braço sobre o ombro do avô: “Ficou lindo, e soa melhor que nunca!” Ela sorri para o pai de seu pai e este, com uns olhos molhados olha para ela: “Lindo!” De mãos elevadas aconchega a face de sua neta e diz “Obrigado!” Ela sorri e diz que o prazer foi todo dela.

Eles caminham para o carro, ele ainda em êxtase pelo que fizeram, fascinado pelo resultado: “Ouvia-se mesmo bem, e o som era mesmo bom!” Daniela olha para o ancião e diz: “Avô, as novas tecnologias não são só «desprovidas de sentimento». Basta saber como aplica-las e voltamos ao toque humano.”

Roberto estava a um dia do seu nonagésimo aniversário e digamos que cuidar do relógio, embora sempre um prazer, era um cargo cada vez mais difícil de levar a pronto. Trabalhar com engrenagens daquela dimensão pedia demasiado de seu frágil corpo…

No dia seguinte Roberto era homenageado por o trabalho de uma vida – o tratamento e manutenção do bicentenário relógio! O Presidente da Câmara falou na cerimónia: “Boa tarde a todos! É com um especial, e pessoal prazer que, em nome de todos os cidadãos da Vila de Rios, agradeço ao Sr. Roberto, o grande serviço que prestou todos estes anos à nossa modesta vila. Aqui, e agora, declaro-o Cidadão de Honra da Vila de Rios!” Ao dizer isto entrega uma medalha dourada ao Roberto. Este recebe-a e sorri, está simultaneamente agradecido e envergonhado. A banda começa a tocar a música do relógio e Roberto fica especado, sem saber o que fazer, se chorar seria vergonhoso ou compreensível. Consegue manter a compostura até a peça terminar. O Presidente diz-lhe baixinho: “É a sua vez…” e mostra a Roberto o púlpito.

Roberto sobe o pequeno degrau e pousa a caixa da medalha. Olha em frente: “Obrigado! Obrigado a todos! Toda a minha vida trabalhei com relógios, sou um sortudo… As pessoas perguntam-me o que eu fiz da vida… e eu respondo: «Trouxe o tempo ao mundo.»… Mesmo durante a guerra, num cenário tão caótico como a matança entre nações, um relógio a clicar traz serenidade e ordem a este mundo cão!... Espero que não volte a haver guerra na nossa terra… Estou agradecido e honrado! Mas não deixo de sentir uma nostalgia a crescer no meu coração. Há quase dez anos que me questiono: quem trará o tempo a estas gentes quando eu me retirar? E acreditem que me retiro a cada click que clica… Espero que a Câmara encontre alguém apropriado para tratar do relógio da nossa vila, pois sem o tempo tudo para!”

Roberto estava indiferente de tão clara substituta, tal como indiferente ao sorriso de sua neta que dava um passo em frente…


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