De manhã também se bebe

Uma vitrina de garrafas, com um espelho por trás. Deve ser para os clientes se verem a si próprios. Terá havido algum estudo que indicava esta necessidade? Não creio…

Este balcão é demasiado longo para a quantidade de pessoas que aqui estão, mas também, são onze da manhã numa quinta-feira. Se calhar este detalhe temporal dita a falta de pessoas. Trabalho à noite, porque é que não haveria de ser socialmente aceite eu beber um copo depois do trabalho? Toda a gente o anda a fazer, mas como o meu pós laboral calha de manhã sou uma alcoólica! Foda-se! O pior é que, mesmo estando certa de estar correta, ou mais precisamente de não estar errada, até eu me sinto quase como uma alcoólica.

Vozes de mulheres… afinal não estou sozinha no bar. Ui! São bonitas! Afinal não são bonitas para mim, algo generalista. Será que sou rude ao colocar na minha mente a ideia de estar sozinha no bar quando tenho o barman mesmo há minha frente a olhar para o telemóvel?!… Deve ser, nunca estive realmente sozinha no bar, por isso colocar esta proposição deve ser pejorativo para o senhor. Mas por outro lado, também posso simplesmente estar a colocar a questão noutro prisma: existem dois grupos de pessoas num bar, os clientes e os funcionários; como quando entrei não estavam clientes no bar, estava sozinha. Não tenho a certeza, principalmente porque estou cansada e sem paciência para debater comigo mesma esta questão mesmo muito importante! Mas como não tinha nenhum objetivo depreciativo face ao zombie aqui da frente, não devo estar a minorar ninguém.

Estou despenteada, que puta de noite de caos! Mesmo depois dum banho nota-se que a coisa não foi fácil… Mas as olheiras têm melhorado esta semana, mesmo sem o corretor notam-se pouco, exceto se fizer isto com o pescoço… mas também ninguém me vê deste angulo… felizmente!

“Olá Dra. Júlia!”

“Olá… Desculpe, não me recordo do seu nome.” Nem de quem é nem de quando nos conhecemos…nem onde…

“Sou a Maria, a nova enfermeira. Olá!”

É demasiado alegre para mim esta moça… espero que amaine! “Olá Enfermeira Maria. Como está?” Genérica pergunta de boa educação, saiu-me por impulso, quase como o contrair do quadríceps quando se martela o tendão patelar.

“Estou bem! Bolas! Foi uma noite mesmo difícil! Estava a ver que morria!”

“Sentiu-se mal?!”

“Não! É só uma forma de falar...”

Não muito feliz esta forma de falar.

“Trate-me por tu, esteja à vontade.”

“Ok, Maria... Também tive uma noite difícil!” Vou tentar ser simpática e envolver-me realmente numa conversa empática (os seus ombros relaxaram ligeiramente, ela não se apercebeu) “Trata-me por Júlia… Bebes alguma coisa?”

“Porque é que estaria aqui se não fosse para beber um copo?”

Tem um sorriso bonito. “Verdade! Ei, desculpe! A senhora gostaria de pedir…” Pobre moço, ser desperto do seu sono digital sem ligeireza, eh eh.

“Queria um whisky, se faz favor.”

“Eu pago Maria, com a noite que tive, bem preciso de um momento tranquilo antes de ir dormir doze horas. Senhor largue essa criança, traga aquele jovem adulto que tem ali em cima.”

“Obrigado! Não era preciso…!”

“Eu sei, mas quero pagar-te um bom whisky.”

“Obrigado!… Hoje houve muitos acidentes não houve?”

“Mesmo… Foi especialmente complicado lidar com um caso! Passados uns anos começas a dominar o teu dia de trabalho, mas quando chega uma pessoa mesmo mal e estás às aranhas, sentes-te perdida e sem saber o que fazer… Já não estou habituada, sabes?”

“Acredito Júlia, aliás, de alguma forma entendo perfeitamente. Todos os meus dias de trabalho são assim. Hoje mal comecei a trabalhar começou a correr mal… Mas acabou muito bem por acabar aqui contigo, com um incrível whisky no meu copo e uma boa conversa.”

“A sério? Sem dúvida deves ter dias destes muitas vezes…”

“Não, este é especial…”


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