Era para aviar uma prescrição de ópio, se faz favor.

Nota: Este conto não deve ser lido por crianças pois contém referências a violência do foro físico e sexual.

 

Era para aviar uma prescrição de ópio, se faz favor.

 

Andrew Davis caminhava no seu típico caminhar, enorme quantidade de peso na perna direita, e uma baixíssima quantidade de peso na esquerda. A dor era intensa; mesmo depois de duas cirurgias, os médicos não conseguiram remover todos os estilhaços dum projétil de canhão de sua perna.

Andrew era um veterano da Guerra Civil Americana e uma das suas vítimas. Pagou com a saúde a liberdade de milhões de pessoas. Mas ele não olhava para a coisa com esta grandiosidade filosófica, somente pensava que a puta da guerra, e todos os homens que a ordenaram deviam terminar no inferno.

A dor na perna esquerda estava a piorar a cada dia que passava, a cada hora que passava. Andrew dirigiu-se à farmácia e entregou a sua prescrição do médico ao farmacêutico. “Era para aviar uma prescrição de ópio, se faz favor.” Pediu.

Andrew saiu da farmácia de sorriso na face e comprimidos de ópio no bolso.

Ao entrar em casa já quase não mancava - a vida já não parecia ser assim tão má, tão melancolicamente violenta. A guerra nem foi assim tão má! Grandes amizades e em dias de vitória mulher que farta. Era só escolher…

Andrew não era boa pessoa, nem de perto meu caro leitor. Tenho a extrema infelicidade de lhe contar que em pelo menos duas ocasiões Andrew Davis foi o autor da violação de uma mulher. Ele pintaria a situação em moldes muito apaziguados: dizendo que elas queriam mas que se estavam a fazer ou naqueles dias do mês; talvez dissesse que sendo vitorioso, ele e seus companheiros, mereciam festejar e usufruir dos espólios de guerra. O capitão, ainda de sangue e lama no uniforme, simplesmente pegava numa garrafa e bebia até alcançar o oblívio na sua tenda ou num bar qualquer. Em ambas as situações, se me recordo bem, ele violara mulheres adultas, esse era o limite que ele estabelecera.

“Mary! Já cheguei!” Gritou Andrew chegado a casa. Foi à cozinha, nada de Mary. Estranho. Pegou num copo e foi ao armário buscar uma garrafa de vinho.

Mary apareceu dois copos depois. Andrew estava consciente mas por pouco. A sua cabeça passara os últimos minutos a cambalear para a frente e para trás. Andrew despertou com a nova presença na sala. Coçou a perna esquerda e disse: “Onde estavas?”

“Estava a pôr a roupa a secar.” Respondeu Mary.

“Que é o jantar? Tenho fome.”

“Ensopado de batata. Mas ainda não está pronto.”

Andrew não respondeu, pelo menos com palavras. Mal ouviu que a comida não estava pronta fez uma enorme careta e Mary retirou-se da divisão em direção à cozinha.

 

*

 

Um mês depois.

“Mary, viste os meus comprimidos?” Gritou Andrew. “Mary!” Gritou logo de seguida; esperar não era o seu estilo.

Cabisbaixa e a olhar para os pés do esposo, Mary surgiu junto da porta do quarto e respondeu: “Acho que os terminaste…”

“Já!? Mhm! Tens a certeza que não foste tu que tomaste os últimos comprimidos? Sei que estás com dores daquela altura do mês…”

Mary curvou ainda mais os ombros e tomou o seu tempo para responder. Respirou fundo e disse: “Ontem tomei um, estava mesmo com muitas dores!” Olhos a suplicar, aguados com umas lágrimas e soluços já a formarem-se.

“Merda! É que já não tenho mais nenhuma prescrição do médico, ele mudou-se e não deu a informação ao outro médico…”

No dia seguinte Andrew estava irrequieto e mal disposto. Bebeu mais vinho que é hábito. Quando o vinho acabou, Andrew saiu para as ruas, para os bares, para os clubes, para os bordéis.

 

Andrew passou uns dias maus, visitava a sua farmácia usual, mas o farmacêutico não lhe dava o que ele precisava, sempre a mesma conversa – “Você precisa dum papel do médico.”

Num desses dias, Andrew saía da farmácia quando ouviu “Psst!” Olhou para o lado e um homem olhava para ele. O homem brincava com um papel em suas mãos…

“Sim?” Inquiriu Andrew.

“Vejo que o senhor tem uma ferida de guerra e que está a ter dificuldades a arranjar a medicação…”

Andrew olhou em redor, aproximou-se do homem e disse: “Como é que você sabe disso? Uh?”

O estranho deu um passo atrás e explicou: “Meu caro, a guerra acabou há um ano e meio. Pela sua idade você só pode ser um veterano. Ah!” Levantou ambos os braços em sinal de rendição e acrescentou: “Não quero saber de que lado. Só o quero ajudar. Eu tenho aqui uma nota do médico que era para o meu pai que também, tal como o senhor, se magoou na guerra. Infelizmente ele já não se encontra connosco, mas digo-lhe que a prescrição ainda está em ótimo estado. Ora veja.” O homem passou-lhe o papel para as mãos.

Andrew viu que efetivamente era uma prescrição de ópio, mesmo o que ele precisava, mas o papel estava meio amanhado e um pouco comido pelo tempo e pela entropia (que é sensivelmente a mesma coisa).

Junto à porta da farmácia, os dois homens andaram para a frente e para trás com o preço e validade do plano, mas no fim lá chegaram a acordo e Andrew comprou a prescrição do médico.

Entrou na farmácia e mentiu que afinal tinham uma nota do médico antiga que ainda não tinha usado. O homem que o atendeu teve pena e aceitou a mentira. Piscou o olho e nem lhe ficou com a nota do médico.

Andrew saiu contente e mancou em direção a casa. Trezentos metros à frente sentiu uma enorme dor na nuca. Caiu e viu, antes de desmaiar o desmaio da morte, o estranho a vasculhar os seus bolsos.

(Os créditos da imagem deste conto pertencem inteiramente a Bullenwächter)

Anterior
Anterior

O Pastor: O Mercado (9)

Próximo
Próximo

O Pastor: Dia da Tosquia (8)