Hoje não me calo

Maria lavava a loiça do jantar que comeu sozinha. O esposo, nem às 23 horas estava por casa, mais uma vez ficara a tratar de «negócios» até tarde. Isso é o que ele dizia, o cona-da-mãe do caralho!

“Sempre a mesma coisa… Sempre!” Dizia Maria entre dentes, enquanto colocava o último copo a escorrer. Enquanto secava as mãos ouviu a porta da garagem a abrir. Dirigiu-se para a sala e ligou a televisão. Estava a dar uma série policial em que o detetive é cego, mas o seu cão guia ajuda-o a resolver os casos. Ela não gosta da série, mas o propósito da televisão não é outro senão fingir que ela não está à escuta de todos os movimentos na divisão ao lado – a garagem.

Maria ouviu o carro entrar na garagem, Gregório desligar o carro e fechar o portão automático. Ouviu Gregório abrir porta e logo de seguida fechar a porta do carro. Pum! Passos, remexer. Mais um pouco de remexer e passos até à porta atrás dela.

Gregório apareceu na sala, Maria não o via, invés fingia estar completamente embrenhada no estúpido programa de televisão. Gregório, sem razão específica alguma, somente por coincidência, chegava muitas vezes na hora do Detetive Cego; como Maria via sempre o telejornal no canal desse programa, acabava sempre por fingir ver a mesma série pois ligava a televisão à pressa… Maria já conhecia algumas das piadas recorrentes. Todas estas coincidências levaram Gregório a pensar que a sua esposa adorava o programa e até estava a pensar comprar uma caneca para ela que dizia “Não te estou a ver, mas o meu cão está!”, uma das frases do Detetive Cego.

“Boa noite! Desculpa Maria, mais um dia complicado no escritório…” Desculpou-se Gregório.

“Bo’noite!” Respondeu Maria, quase inaudível.

“OK…” Disse Gregório para si. Depois, para Maria perguntou. “Há comida feita?”

Maria pausou a série e olhou para ele. Olhou-o nos olhos por um momento e virou-se de novo para a televisão. Colocou a série a dar. “Sim. Fiz sopa… Ainda está na panela no fogão.”

“Obrigado!” Gregório foi para a cozinha. Da sala veio a voz de sua esposa: “Aquece no micro-ondas que já deve estar fria!”

“Obrigado.” Disse Gregório, baixinho.

Gregório comeu a sopa com vontade, foi um dia intenso de trabalho, já não tinha um dia com tantas «tarefas» como aquele dia há imenso tempo. A meio de uma trinca de pão, Maria entrou na cozinha e perguntou. “Onde estiveste até estas horas?”

Gregório engoliu o pão e olhou para a esposa. Depois de quatro anos de casados, e do acordo que fizeram antes do casamento, esta era a primeira vez que ela o questionava sobre os seus dias longos de trabalho.

“Escritório.” Colher de sopa na boca.

“Escritório? Sempre a mesma história… Gregório, estou farta disto! Não sei exatamente o que andas a fazer, mas pelo teu secretismo todo e pelo aspeto dos teus «colegas de trabalho» …” Fez o sinal de aspas com os dedos.

“Que têm os meus colegas de trabalho?” Interrompeu Gregório.

“Eu sei que não são mulheres… Eu sei. Não me farias isso.” Disse Maria, sentando-se à frente dele.

“E então?” Gregório sabia que quanto mais se falar daquilo pior. Toda a experiência no ano passado com os interrogatórios que o chefe fez a toda a gente para saber quem andava a trair a Organização assim o ensinaram. Não era a sua querida esposa, doméstica de profissão, que nem uma pessoa matou, que o iria quebrar.

“E então?” Repetiu Maria. “Gregório, eu sei que os teus colegas de trabalho são perigosos, já vi por diversas vezes pistolas debaixo dos casacos deles…”

“Alguns dos meus colegas, por exemplo, o Frederico…” O melhor amigo dele, um regular convidado na casa deles. “Ele é segurança na empresa, tu sabes isso.”

“Sim… Mas tu não és e também sais todos os dias de pistola.”

Uma colher de sopa ficou a meio caminho, verteu um pouco. Passado um segundo de hesitar a colher foi levada à boca. Depois de engolir, Gregório disse. ”Maria, querida; fizemos um acordo em que não falávamos do meu trabalho. Eu trago o dinheiro para casa e ponto final. Sim, às vezes chego atrasado, e sim, os meus colegas de trabalho nem sempre são os melhores convidados mas… são boas pessoas.”

“Gregório, não me dás a volta! Eu abri o cofre, não só vi a pistola como vi e li os documentos! Eu sei que fazes parte da máfia!”

Gregório levantou-se, empurrando a cadeira e fazendo-a cair. “Não devias ter feito isso, mulher! Oh merda!”

“Nã nã nã! Eu sei que matas pessoas para o teu chefe. Pelo menos por duas vezes a tua roupa tinha manchas de sangue. Pequenas manchas, mas claramente de sangue. Juntas isso às pistolas, aos papéis que tens ali…” Apontou para a direção da garagem. “… Para os teus horários e o caso não é difícil de resolver. Até o detetive daquela série estúpida era capaz de resolver este caso.”

“Maria!” Disse Gregório, suavemente. “Não podes contar a ninguém, ninguém! Ouviste! Se alguém sabe que sabes estamos fodidos.”

“Eu não conto a ninguém, estúpido! Já vi televisão suficiente para saber isso.” Começou a chorar. “Só quero que pares, meu amor! Estou grávida, vamos ter um filho.”

“O quê?”

“Sim, vamos ser finalmente uma família. Não quero que o nosso filho tenha um pai que anda pra’í a matar pessoas!”

Gregório abraçou a esposa e disse ao seu ouvido “Eu vou parar!“

Nesse momento o telemóvel dele tocou. Ele viu o nome no monitor, pegou no casaco, tirou a pistola do cofre e saiu noite adentro.

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