A Acordadora

A noite já cobria o dia com o seu assustador véu negro. O vento assobiava alto. O Sr. Smith chegou a casa do trabalho, do seu último dia de trabalho da sua vida – reformara-se aos 74 anos, depois de mais de 50 anos numa mina de carvão.

Smith, coberto de carvão, quase invisível nas ruas escuras de Birmingham, marcava um enorme contraste com a bela casa que a sua esposa mantinha. Tudo limpo e arrumado, não haviam riquezas ali, mas havia comida na mesa, e teto sobre as suas cabeças. E como acrescentava sempre a sua esposa que era friorenta: “E uns toros na lareira pra nos aquecer os ossos!” Ruth dizia sempre isto sempre que se falava sobre a situação deles, e sorria sempre o mesmo sorriso, amarelo e sem um dos incisivos superiores. Mas verdadeiro!

Ruth veio receber o esposo, abrindo os braços em sinal de bem-vindo. Ajudou o John a despir o encardido casaco e pousou este, conjuntamente com a negra boina, numa cadeira.

“Senta-te John… senta-te! A comida já está preparada, hoje temos tarte de carne para festejar!” Ruth lavava as mãos cobertas do carvão do casaco. John deixou-se cair numa das cadeiras e suspirou um longo e cansado suspiro.

Ruth pegou numa bacia e pousou-a junto dos pés de John e ajudou-o a lavar as mãos. Todos os dias o casal repetia este quase cerimonial comportamento. A vida da mina nunca fora fácil, mas nos últimos anos John sofria cada vez mais de problemas respiratórios, dores de cabeça lacerantes e cansaço extremo. Havia dias que passava horas deitado no chão das galerias a recuperar o fôlego. O lavar das mãos era um pequeno gesto que Ruth fazia para amainar a existência do esposo.

Enquanto isto sucedia, Bob, o cão do casal andava de um lado para o outro – ansioso pois sabia que depois da refeição os restos eram seus.

Depois das mãos bem esfregadas, Ruth pegou no pano que trazia preso no cordel do avental e secou as mãos de John. “Bem, agora come.”

Os dois comeram e apreciaram a tarte em silêncio. Apenas a lareira trazia luz ao mundo destes três.

“Olha o que me deram!” Disse John, enquanto Ruth lavava a loiça do jantar.

“O que é?”

John estendeu mais a sua mão e Ruth pôde ver que nesta se encontrava um belo relógio de bolso, com uma pequena corrente para prender no colete.

“Oh! Que bonito! Um relógio!” exclamou Ruth.

“Sim, depois de mais de 50 anos a trabalhar para eles, deram-me um relógio para a reforma… Quando já não preciso de saber as horas… O que eu queria é que não me despedissem! Como é que vamos fazer para ter dinheiro?”

Ruth pousou a mão no ombro do seu companheiro e sorriu. “No outro dia ouvi a Liz falar que uma mulher acorda a gente da mina, e da fábrica também…”

“Acorda!?”

*

Na manhã seguinte Ruth saiu porta fora mal se fez dia, por isso, por volta das 9 horas. Foi a uma carpintaria e quando voltou vinha com um comprido pau em mãos.

Ao longo da semana seguinte, Ruth bateu à porta de todos os habitantes do bairro. Ali, toda a gente ou trabalhava para a mina, ou para uma das várias fábricas da cidade. A hora de acordar, principalmente naquele Inverno inglês, era difícil de respeitar sem um relógio, dado o tardio amanhecer. Naquele ano de 1861, relógios eram objetos raros e caros, mas sem grande consideração deste fato, as empresas mandavam os seus funcionários estar às 4 ou 5 ou 6 da matina nos seus postos prontos para iniciar o seu turno. Daí o novo emprego da Ruth, a Acordadora.

Após uma semana de bater porta em porta, Ruth angariara um número de clientes que ela considerou fazível de acordar e que conseguiria pagar pela comida e lenha que tanto necessitavam.

*

John dormia ferrado, nem se mexeu quando Ruth se levantou. 3:35. Ela guardou o relógio no bolso do casaco e saiu, de longo pau em mão. No outro bolso tinha a lista e morada de toda a gente e respetiva hora que tinha que acordar. Bob acompanhou Ruth rua fora.

A morada não era necessariamente uma precisa porta ou rua, ou código postal, a maior parte, era um nome e a descrição de uma janela.

Chegaram à morada do primeiro cliente. Ruth, na pouca luz que os candeeiros a gás traziam, leu as suas notas. «Rua do Mercado, porta azul. Primeira janela do segundo andar.»

“Au!” Ladrou Bob.

“Shhhiu!” Disse Ruth. “Não faças barulho! Estamos aqui para acordar pessoas, mas só os que nos pagaram…. Os outros que cheguem atrasados ao trabalho. Ou que nos paguem. Sim?”

Bob ouviu atentamente as palavras de Ruth e não voltou a ladrar.

Ruth achegou-se ao edifício e elevou a enorme cana. Quando esta estava perto da referida janela, ao de leve, Ruth bateu na janela. Esperou. Bateu de novo. A janela abriu-se e apareceu o seu ensonado cliente, a coçar os olhos.

“Três e cinquenta, Sr. Boris.” Disse Ruth, mais através do mover da sua boca do que em vocalizar.

“Obrigado.” Respondeu Boris.

Boris foi o primeiro ensonado de muitos; Ruth e Bob passaram as noites dos anos seguintes a caminhar pelas escuras ruas de Birmingham, a acordar a gente sem relógio, até ao dia em que ela já não conseguia levantar a cana. Nesse dia, toda a gente chegou atrasada ao trabalho!

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