Há que bater nas rodas

A fumaceira da locomotiva escurecia os céus transmontanos. O Douro refletia a dourada luz do verão português. Nas calmas águas, o comboio movia-se numa refletida realidade, recheada de peixe e algas.

O comboio parou na estação do Pocinho e alguns passageiros saíram. Malas numa mão, filhos noutra. A nuvem da locomotiva a vapor ainda temperava o ar e dificultava a vista.

João levantou-se da sua cadeira no seu escritório na estação e saiu para a plataforma. A brilhante luz fez com que ele fechasse os olhos e levantasse a mão para os proteger. Voltou atrás e pegou na sua boina. João ficou a ver passar os passageiros, apressados sabe-se lá para quê, ou para quem.

Passados cinco minutos, João pegou no martelo que tinha sempre no bolso das calças e desceu para a linha do comboio.

João bateu com o martelo numa das rodas da locomotiva. Piimmm! Ficou a ouvir. Quando estava satisfeito avançou para as rodas seguintes. Bateu com o martelo em cada uma das rodas metálicas e cada uma cantou um semelhante Pim! João deu a volta ao comboio e bateu nas rodas do outro lado. Quando terminou, de volta à frente do comboio, subiu para a cabine da locomotiva.

“Bom dia, Sr. João!” Cumprimentou alegremente Artur. Artur era um jovem de seus 24 anos e estava coberto de negra fuligem dos pés à cabeça. João apertou a sua mão e devolveu os bons dias. “Hoje está uma tosta… não está?” Perguntou Artur, limpando as linhas de suor que escorriam pela face, formando rios no mapa que a fuligem formava na face do jovem.

“O quê?” Perguntou João.

“Está muito calor!” Disse Artur, mais alto.

“Ah! Sim…. E vocês aqui junto à caldeira ainda pior. Pelo menos podem apanhar o ar que passa."

“Sim, mas hoje até esse ar está quente." O jovem ajeitava uma válvula aqui, outra ali.

“Está quente sim…”

Artur achegou-se ao ouvido de João. “Oh Sr. João, quando é que reforma? Você já não ouve um caralho!” Artur seguiu em direção ao monte de carvão que estava imediatamente atrás da cabine. Pegou numa pá e espetou-a no monte de carbonizada madeira. Ao voltar para a caldeira sorriu para João.

“Eu ouço bem, meu jovem. Só que com este barulho todo é difícil apanhar o que dizes. E para piorar, tu falas baixo.”

Um homem extremamente alto subiu à cabine. “Como vai isso, Sr. João?” Disse o homem demasiado alto, habituado ao idoso inspetor dos comboios. “Como vão as rodas, já bateste em todas ou vieste logo pra conversa?”

“Está tudo nos conformes. Aqui o teu aprendiz está a duvidar da minha capacidade.” Virou-se para Artur, que trazia mais uma pá de carvão para a ardente caldeira. “Jovem, já sou Batedor de Rodas há mais de 20 anos, o meu ouvido está perfeitamente… Ouve perfeitamente se há problemas ou não.”

Artur deitou o carvão para as violentas chamas que residiam dentro do enorme forno. Olhou para João e pediu desculpa.

*

O comboio vinha de cima, das terras do amigo do Douro, o Sabor. Ainda trazia alguma neve das terras de Carviçais. Moncorvo apenas via a neve no topo do Reboredo, lá em baixo nada, só geada.

Quando o comboio chegou ao Pocinho, João esfregava as mãos enquanto via a locomotiva chiar até ficar imóvel. Desceu para a linha e foi batendo nas rodas com o martelo. Piimmm! Por vezes punha as costas da mão numa caixa metálica, que ele nem sabia o nome e testava a temperatura. Não estava demasiado quente, mas também naquele gelo era difícil sobreaquecer qualquer coisa. Piimmm! Outra pancada seca no metal.

O vento batia na face do idoso, passando por entre as suas acentuadas rugas e cantando a música do inverno.

Piieiimm! Soou a roda, fora da frequência normal. João seguiu em frente e continuou a bater mas outras rodas. Piimmm!

Dada a volta ao comboio, João acenou ao Artur e ao Roberto “Fininho”. Estes apitaram a ensurdecedora buzina e, lentamente, o comboio reiniciou a sua viagem.

Uns quilómetros à frente, o comboio passava por um túnel e a diferença de temperatura dos carris no exterior e interior do túnel fez com que umas das rodas estalasse e partisse. A carruagem caiu ao chão e arrastou-se num ensurdecedor ruído e festim de faíscas.

Na cabine, Artur olhou para trás e viu enormes faíscas a virem da carruagem que estava a ser arrastada. A carruagem seguinte, começava a virar e estavam quase a perder o controlo do comboio inteiro, correndo o risco de caírem no rio. Artur travou a enorme máquina e esta assobiou o som do trovão - metal a bater em metal!

O comboio parou. Felizmente ninguém se magoou. A linha do douro esteve fechada uns dias, as pessoas foram evacuadas de barco, mas João nunca mais martelou uma roda metálica na sua vida.

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“Mas eu não uso tangas.”

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