O Itinerante Daguerreotipista

Nota: Daguerreótipo foi o primeiro processo fotográfico a ser comercializado ao grande público; foi divulgado em 1839, tendo sido substituído mais tarde por outros métodos de recolher imagens.

 

Na distância vinha um vulto que subia o caminho na minha direção. A luz direta do Sol não me permitia discernir se era conhecido ou estranho. Mais perto percebi que se tratava de um estranho desta pequena terra alentejana. O calor estava bravo e seco, tudo em nosso redor era amarelado e poeirento. As convectivas correntes de ar quente subiam e distorciam a imagem deste, ainda por conhecer, desconhecido.

A cem metros já conseguia perceber mais que um perfil, o homem trazia um carro de mão atrás de si e o burro de carga era ele mesmo. Que chatice!

A cinco metros de minha pessoa olhei para ele e levantei o chapéu para estabelecermos contato visual. “Olá compadre, como está?”

“Boa tarde! Estou bem, mas estou com sede, onde posso arranjar água nesta terra?” Sem me deixar responder atirou-me outra pergunta. “Já agora, que terra é esta?”

“Você não é mesmo destes lados pois não? Esta terra é Ligares, e você caminha mais uns minutos nesta direção e já vê a hospedaria da Maria Antónia…” Neste momento o senhor estava a metro e meio de mim e parara. Tinha um bom fato, pena estar todo coberto pelo nosso ubiquitário pó alentejano. Tinha o colete aberto e a camisa também, ao ponto de eu, que sou mais alto que ele, lhe ver o umbigo. A tez da pele não era morena de quem anda na rua, mas também não era de doutor…

“Obrigado. Esta subida deu cabo de mim… Chamo-me António Maria, sou um retratista e venho aqui vender retratos à gente da terra.” Olhei para a sua pequena carroça. O que será que tem ele nesta pequena carroça que nem um homem cabe lá dentro? Para minha felicidade o homem explicou-se imediatamente. “Aqui trago todo o meu equipamento para eu recolher os retratos daqui da gente de Ligares. Vou estar por cá uns dias na hospedaria da senhora… Maria Antónia?”

“Sim.” Confirmei.

Acenou e disse. “Obrigado. Vou andando, ainda quero tirar uns daguerreótipos hoje.” Assim se despediu com um adeus gesticulado e eu como Narrador desapareci pois António Maria já não precisava de mim.

 

António Maria alugou um quarto na hospedaria da senhora de nome quase igual ao seu e pôs na entrada da hospedaria o seu equipamento de daguerreotipia e um cartaz com os preços das imagens. Sempre que um senhor ou senhora de clara riqueza se aproximava, António levantava-se e mostrava algumas dos daguerreótipos que ele possuía na sua coleção - mulheres bonitas, jovens, feias, esbeltas, gordas, e claro, homens bonitos, jovens, esbeltos, gordos; bem, uma panóplia de retratos. Tinha ainda algumas belas imagens de Portalegre.

“Bom dia meu senhor! Gostaria de ter um verdadeiro retrato de sua pessoa?” O homem, numa falsa pressa continuou a caminhar. António seguiu-o e mostrou-lhe duas das suas fotografias favoritas, a senhora Isabel com uma pereira atrás no quintal do Sr. Joaquim e a Igreja da Misericórdia de Portalegre. Ao ver as imagens o aparentemente apressado senhor parou e ficou a observar atentamente as figuras que à sua frente tão nitidamente se apresentavam.

Curioso, o senhor perguntou. “ Que é isto, óleo? Uma nova técnica de pintura?” A sua face não demonstrava apenas viva curiosidade, mas também um pouco de desconfiança.

António, habituado à pergunta (tão perguntada e de tantas formas, até já lhe perguntaram se era magia…). “Não, não. O que o senhor tem nas mãos são daguerreótipos. Eu uso aquela máquina ali para recolher a sua imagem e esta é colocada aqui.”

“Quanto custa esta imagem?” O senhor abanava a imagem da igreja…

“Cem reis.”

“Isso é bastante caro.” O homem olhou outra vez para o daguerreótipo. “Mas pode ser…”

Transação terminada o senhor estava prestes a voltar à sua falsa pressa quando António meio esquecido disse: “Não quer um retrato seu também?”

O senhor ficou por uns bons 30 segundos parado a pensar… “Sim, quero. O que preciso de fazer?”

“Sente-se nesta cadeira que eu ajusto a coisa rapidamente.”

A cadeira tinha um encosto muito estranho. António ajudou o senhor a colocar o pescoço no referido encosto imobilizando o senhor. “Isto é para você ficar parado. Obter o seu retrato demora uns minutos, mas felizmente já não demora tanto como antigamente. Esta cadeira é dos daguerreotipistas antigos, mas eu acho que mesmo com esta câmara de daguerreótipo mais rápida as imagens ficam melhores… Isso, agora fique quieto até eu lhe der o sinal.”

António dirigiu-se para o seu instrumento e mexeu em objetos estranhos e ajustou o que tinha que ajustar para o retrato ser perfeito.

O senhor da falsa pressa ficou contentíssimo com a sua imagem, imediatamente mostrou a imagem a toda a gente da hospedaria e que passava na relativamente movimentada rua. António Maria estava contente pois ali tinha a melhor publicidade que um homem pode pedir.

Acabou por ficar uma semana inteira naquela pequena terra alentejana. Ficou até que toda a gente que podia pagar pelo seu retrato já tinha um belo exemplar da sua imagem em sua casa.

Arrumado o carro de mão, reabastecido de comida e de água, António Maria começou a arrastar o carro em direção a outras terras, outras paisagens, outras faces… Felizmente desta vez era a descer.

(A imagem que acompanha este conto é um daguerreótipo de Frédéric Chopin obtido por Louis-Auguste Bisson em 1849)

Anterior
Anterior

O Golpe ao Corredor Vasari

Próximo
Próximo

O Comboio Fúnebre